Autor: Daniela Araujo

  • Rito de iniciação e passagem em Moçambique | Solange Sitoe

    Rito de iniciação e passagem em Moçambique | Solange Sitoe

    Enriquecendo nossas Textuações, o testemunho de Solange Sitoe, uma moçambicana residente no bairro Sommerschield, na capital Maputo, oferece um vislumbre fascinante sobre os rito de iniciação e passagem, a riqueza cultural e a força identitária de Moçambique, um país conhecido pelo seu povo acolhedor e grande potencial.

    Solage, conhecida e chamada carihosamente de “Sol” participa de um grupo de whatsapp de pesquisadores brasileiros em Maputo. Atenciosa e extremamente solidária, Sol divulga programações culturais e acompanhou um grupo de estudantes em diferentes locais onde acontecem os ritos de passagem. A sua narrativa tece relatos afetivos de tradições, línguas e a importância inegável da sabedoria ancestral, destacando, em particular, a etnia Maconde. Solange descreve a nação como um país “vivo”, acolhedor, e com um imenso potencial, sendo essa visão fundamentada na riqueza da identidade cultural e na coesão social, elementos que ela se empenha em preservar e compreender.

    Embora o Português seja a língua oficial, a identidade de Moçambique é forjada em um mosaico de etnias e línguas distribuídas pelas zonas Sul, Centro e Norte. Solange, além de falar Português, domina parcialmente a sua língua materna, o Xichangana (falado pela etnia Tsonga na Zona Sul), e demonstra familiaridade com outras línguas importantes, como o Emakhua (dos Macuas, uma das maiores etnias do Norte) e o Gitonga. A manutenção dessa diversidade linguística é considerada uma “bênção” por Solange. Ela vê nos seus avós, muitos dos quais não falam Português, as verdadeiras “bibliotecas vivas”, guardiões do vasto conhecimento e dos costumes. Este respeito pela sabedoria ancestral é um pilar cultural, servindo como um contraponto essencial à pressão da globalização para a adoção de línguas estrangeiras.

    Nesse vasto panorama cultural, a etnia Maconde (ou Makonde) ocupa um espaço especial. Os Macondes são um povo Bantu que habita o planalto que se estende do norte de Moçambique, principalmente em Cabo Delgado, até o sudeste da Tanzânia. São historicamente reconhecidos pela sua forte identidade cultural e resistência, tendo desempenhado um papel crucial na Guerra Colonial, onde a venda da sua arte financiou a luta pela independência (FRELIMO). A imersão de Solange na cultura Maconde começou em 2019, após conviver com meninas que tinham passado pelo rito de iniciação. Os ritos de iniciação e passagem anuais são centrais para a comunidade, atuando como uma instrução de passagem da vida de criança para a vida adulta. Durante este período, meninos e meninas são ensinados a lidar com a vida adulta, a respeitar os mais velhos, a preparar-se para o casamento e a interagir na sociedade.

    A identidade Maconde é expressa através de uma arte de reconhecimento mundial. A dança Mapico, um património mundial, é um dos símbolos mais fortes da etnia, notável pelo uso de máscaras em rituais de iniciação masculina. Além da dança e da música, os Macondes são célebres pelas suas esculturas em pau-preto, que os tornaram mundialmente famosos e que abordam temas profundos da sua filosofia de vida: o Ujamaa, que simboliza a vida em comunidade e a coesão de grupo, e o Shetani, que representa os espíritos e o reino invisível. Outros traços distintivos incluem as tradicionais tatuagens faciais das mulheres e a sua língua própria, o Shimakonde.

    O que move Solange é a cultura e o esforço para entender em suas próprias palavras: “quem eu sou, de onde eu venho, quem foram os meus”. Uma jovem moçambicana dedicada a garantir que as gerações vindouras sigam essa linhagem, respeitando as passagens, a história e o orgulho moçambicano. A história de Solange é um convite irresistível para explorar a profunda identidade cultural de Moçambique, onde a força da tradição não é um obstáculo ao futuro, mas sim o seu alicerce. 

O Museu de História Natural de Maputo, com sua fachada Neo-Manuelina erguida em 1933, transcende a função de um mero depósito de espécimes. Ele se estabelece como um dos mais importantes portais de Moçambique para o debate sobre identidade, história e o legado colonial. Ao caminhar por suas alas, fica evidente a sua relevância intrínseca, mas também o dilema estrutural que precisa ser endereçado.

A importância dos museus para o desenvolvimento pleno de uma sociedade é inquestionável. Eles são catalisadores da educação cívica, centros de pesquisa e, cruciais, guardiões da memória coletiva. No entanto, é imperativo reconhecer que a arquitetura do acesso, muitas vezes, confina estas instituições a uma percepção de espaço elitista tornado-o um privilégio de turistas e das classes mais abastadas.

Esta crítica não diminui o valor do acervo, mas questiona o seu alcance. O Museu, para cumprir plenamente o seu papel na nação pós-independência, deve continuar a sua jornada de abertura e popularização. Descolonizar o espaço museológico implica derrubar as barreiras sociais e geográficas que o separam do cidadão comum, integrando-o ativamente na vida das comunidades que ele procura representar.

O ponto de maior impacto emocional e intelectual da visita reside na raríssima exposição dos fetos de elefante. Esta coleção não é apenas uma curiosidade biológica; é um monumento material à violência ecológica perpetrada durante a era colonial, particularmente associada ao período da Primeira Guerra Mundial.

A caça em massa de elefantes, da qual estes fetos são o resultado direto, foi justificada pela necessidade de “limpar” a terra – a sul do Save, em grande parte – para uma suposta e inevitável exploração produtiva agrícola e de infraestruturas. Esta narrativa de “progresso” colonial revelou-se uma farsa, um verniz ideológico para encobrir a pilhagem de recursos naturais e o extermínio desenfreado da vida selvagem. Os fetos expostos servem, portanto, como uma crítica silenciosa e pungente à lógica extrativista e destrutiva do domínio estrangeiro.

Visitar o Museu de História Natural é um ato cívico necessário.Conhecer sua história, desde os artefatos etnográficos até aos espécimes zoológicos é o primeiro passo para desbravar um pouco mais da história de Moçambique e o processo de colonização ao qual grande parte da África foi submetida. O Museu oferece uma oportunidade de confrontar o passado colonial e a consequente aculturação, permitindo-nos ir além da admiração superficial.

Descolonizar a história não significa apagá-la. Pelo contrário, exige-se uma narrativa crítica que exponha as estruturas de poder, a pilhagem e a violência que moldaram a cidade de Maputo (e Moçambique) até aos dias de hoje. É através desta leitura crítica que o Museu se torna uma ferramenta essencial na construção de um futuro moçambicano mais justo, consciente e plenamente soberano.