Autor: Jader Moraes

  • Enquanto a água não baixa

    Enquanto a água não baixa

    Última parada: Manhiça. Faltando já bem pouco para meu retorno ao Brasil, me desloquei na última semana para esse pequeno distrito localizado a apenas 90 km de Maputo. Na Vila da Manhiça, mais uma vez com o apoio do Alex, conheci pessoas, famílias e um pouco do cotidiano local – as barracas, as igrejas, o grande rio com suas histórias, lendas e personagens temidos.

    Mulher segura ferramenta no campo
    Mama Paineta

    O temor maior é quando ele sobe. Não é história de assombração, é vida real: no ano passado, mais de 200 hectares com diversas culturas agrícolas foram inundados com as cheias do rio Incomáti, impactando centenas de famílias que necessitam dos alimentos produzidos em suas pequenas machambas para sobreviver. A agricultura familiar é a base econômica e social do distrito.

    Encontrei a senhora Paineta, 56 anos, trabalhando em uma das machambas ao redor do rio, ao lado de outras mulheres, que também são maioria aqui, como em quase todas as regiões que visitei. São machambeiras. Elas carregam esse país nos braços, nas costas, nas mãos inchadas e firmes, nos pés fincados no barro criador.

    Paineta trabalha no campo desde 1983, quando ainda era adolescente (“no tempo da guerra”, ela pontua). Em changana, me diz que sabe que em breve virá uma grande chuva, que deve destruir tudo o que estão plantando. Levanta todos os dias e vem ao trabalho não pela certeza de que irá produzir os alimentos que necessita, mas porque não quer ficar sozinha em casa; na terra encontra as amigas e o tempo passa mais depressa.

    Eu fico muito impressionado com a força, os gestos, a ênfase de sua fala, como é possível visualizar no vídeo. É algo muito poderoso. “Mama”, pergunta o Alex, chamando-a pela forma de tratamento que os moçambicanos costumam dedicar às mulheres mais velhas, “hoje está pior do que quando começou a trabalhar?”

    A mama assegura que sim, que antes eram mais previsíveis os períodos chuvosos e menos intensos os volumes de chuva. Era possível plantar, colher e ter uma vida boa através das machambas. Hoje, quando a situação está muito ruim, ela encontra uma amiga que lhe ajuda com algum dinheiro para capinar um terreno, em quantia suficiente para comprar alimento básico.

    Paineta, assim como a maior parte das suas companheiras de jornada, chega na machamba bem cedo, antes do sol torrar a cabeça, e retorna à casa no início da tarde, atravessando o rio que separa as plantações e a vila de Manhiça. Ela sonha um futuro em que a terra volte a ficar boa, com chuvas mais regulares e menos intensas, em que seus filhos tenham grandes plantações.

    “E que não seja mais eu a fazer esse trabalho”

    Ela sonha descansar.

    Quem também sonha dias tranquilos é Júlio Gonçales, senhor octagenário que, após uma vida de mais de cinquenta anos dedicado ao trabalho no campo, hoje vive em repouso numa casa simples construída em um terreno que divide com a família. Embaixo de uma árvore no quintal, me conta sobre seus tempos de meio-campista em um time local e me pergunta sobre os jogadores brasileiros. Falamos de Pelé e Maradona. Sorri, recorda memórias. Quando inicio a gravação da entrevista, já um pouco mais sério e contrito, é direto ao dizer que as machambas já não produzem nada.

    Reclama da seca prolongada e expõe o dilema da relação com a chuva nestas terras: deseja que tenha mais frequência, mas teme a intensidade das águas. “Se cai normal, apanhamos qualquer coisa. Se chover muito, a gente não ganha nada”, explica.

    Rio Incomáti
    Rio Incomáti e as machambas em seu entorno

    Diz que no seu tempo, plantava cana, milho, batata doce. Explica que hoje precisam aguardar a água baixar após as cheias, o que ocasiona períodos inteiros sem plantio e colheita. E me dá a resposta mais cortante que talvez eu tenha colhido em todo esse tempo. Simples, direto, exatamente como transcrevo abaixo.

    “Enquanto a água não baixa, não tem alimento?”

    “Nada”

    “E aí faz como, sr. Julio?”

    “Sofre”

    O “sofre” veio seco e solitário, seguido de silêncio. Demorei um tempinho para absorver a palavra crua. Até então, essa pergunta era sempre respondida com uma explicação dos arranjos comunitários nos momentos difíceis. Dessa vez não.

    Foi uma entrevista breve (rodeada por uma conversa longa). Um pouco antes do fim, perguntei sobre o futuro que sonha para ele, seus filhos e netos. Mais uma vez, Julio usou de poucas palavras para me deixar sem as minhas.

    “Agora, são os meus netos que estão a me orientar a vida. Estou à espera deles seguirem me dando um pouco de comida, até chegar o meu dia de ser chamado”

    Dois homens sentados no quintal de uma casa, um mais velho e outro mais novo.
    Vô Julio e seu neto Alex, que tem sido um amigo e parceiro nessa minha jornada

    Foi mesmo profundo o que vivi em Manhiça. Pelo fato de o Alex possuir familiares no distrito, estive mais íntimo às pessoas, mesmo que brevemente. Almocei no quintal, entre risos e histórias da vila. Caminhei longos trajetos, passando por diferentes casas e compreendendo algumas tradições locais. Terminei o dia tomando uma 2M, a melhor do mundo, em boas companhias.

    Saí com desejo de voltar. E poderia dizer isso sobre Manhiça, mas também sobre todo esse país. Às vésperas do retorno, sei que devo voltar. Algumas experiências e encontros são grandes e poderosos demais para serem vividos apenas uma vez.

    Prova disso: esta é minha segunda vez em Moçambique. Haverá uma terceira. E quantas mais a vida permitir – espero que muitas!

  • Construir resiliências

    Construir resiliências

    Lá se vão 49 dias. E desde que cheguei a Maputo, ao dividir com as pessoas o tema desta pesquisa, colho uma recomendação unânime: “você precisa ouvir o professor Carlos Serra”. Recebi essa instrução já nos primeiros dias, com os professores da Escola Superior de Jornalismo, e em outras entrevistas e conversas informais sobre o projeto.

    Depois de alguns desencontros, devido especialmente à sua agenda muito disputada, consegui enfim cumprir a recomendação de todos os meus interlocutores: ouvi o professor Carlos Serra na última quarta-feira. E descobri o porquê da reiterada recomendação logo na primeira questão da entrevista, sobre os principais desafios, em termos climáticos, que o país enfrenta nesse momento.

    “O maior desafio é assumirmos que isso das mudanças climáticas é sério. E assumir passa por uma forte consciência do problema, bem como das soluções que Moçambique pode adotar”

    O professor Serra é moçambicano, nascido na Beira, segunda maior cidade do país, na região central de Moçambique. Ele me recebeu em sua sala, na Faculdade Nacional de Direito, onde atualmente é diretor-adjunto de Pesquisa e Extensão. Na universidade, leciona disciplinas relacionadas ao direito do ambiente, do urbanismo, do ordenamento do território, do clima e do patrimônio cultural. “São as áreas que me apaixonam”, explica.

    Nas próximas linhas (mais longas do que as demais postagens, espero que me compreendam e consigam chegar ao fim), apresento algumas das principais questões que tratamos na entrevista.

    Homem
    Professor Carlos Serra

    Conversar com o professor foi importante, entre outras razões, porque ele me apresentou com mais profundidade algo que tinha aparecido apenas timidamente nas conversas até aqui – os efeitos dos ciclones que castigam grandes áreas do país. A sua cidade-natal, Beira, enfrentou um evento de extrema gravidade há seis anos, o Ciclone Idai, que atingiu mais de 2,5 milhões de pessoas, provocou devastação e deixou cerca de seiscentos mortos apenas em Moçambique – o fenômeno também foi sentido em outros países do continente.

    Grande parte do país está na rota destes ciclones, com desastres que se repetem ao longo dos anos. Contudo, assom como a professora Telma Manjate, que ouvi no início da minha jornada aqui, ele enfatiza que os fatores preponderantes para a crise não são aqueles “naturais”, mas sim escolhas políticas equivocadas e pouco comprometidas com o futuro do país.

    “A história das nossas cidades não é determinada por razões ambientais ou paisagísticas, mas sim por razões econômicas. A cidade da Beira foi construída em um território ecologicamente sensível e está literalmente afundando. Ainda assim, continua a receber muita população. É um paradoxo: devíamos estar preocupados em criar um plano de mitigação, de deslocamento das populações, mas o que temos visto é uma quantidade enorme de pessoas que chegam e começam a ocupar as áreas que eram arrozais, pântanos etc. Mais gente, mais ocupação desordenada”

    A preocupação com o crescimento populacional desordenado, que pontua diversas falas do professor, não é isolada. Um estudo recente da Universidade Eduardo Mondlane projetou a duplicação da população de Moçambique nos próximos trinta anos. Achei os dados bastante impressionantes: em três décadas, o país deve passar dos atuais 30 milhões para 60 milhões de habitantes. “Esse crescimento populacional em um território tão vulnerável é preocupante”, reforça.

    Para Serra, o enfrentamento dos problemas decorrentes desse quadro envolvem decisões políticas difíceis, que ele não acredita que sejam tomadas neste momento. Ações como o reordenamento do território, com deslocamento da população para áreas mais seguras e mesmo a transferência da capital política de algumas províncias.

    Para explicar um dos grandes problemas da ocupação costeira no país, o professor dá um exemplo que hoje me é muito familiar (minha cabeça vai ao Brasil, a Recife, à Grande Rio, à Nação do Mangue que estamos a construir*). Serra fala da natureza dos manguezais, que suportam os ventos mais intensos, e das árvores mais baixas, com raízes profundas que se interligam, ambos presentes de forma natural em toda a costa. “É como se uma família toda estivesse agarrada uns aos outros para nenhum dos membros se soltar”, ilustra.

    Com a substituição dessas árvores por outras espécies, como algumas frutíferas vindas da Índia e do Brasil a partir da colonização portuguesa, com características mais verticalizadas e não preparadas para resistir a fortes ventos, cria-se um risco para as pessoas e as residências. Ele recorda de um ciclone que recentemente afetou a cidade de Quelimane e tombou imensos coqueiros. “O coqueiro não é dali, mas foi trazido de uma região onde esse tipo de fenômeno é muito menos frequente, e pessoas acabaram perdendo a vida em função disso”.

    Fileira de coqueiros
    Uma “esplanada de coqueiros”, na bela orla de Maputo

    O exemplo foi impactante e me ocupou por um tempo, tomando boa parte dos rumos da conversa. Fiquei pensando em situações muito semelhantes também no Brasil, de modificação de paisagens naturais, que agravam desastres e ceifam vidas. O homem é o lobo do homem mesmo…

    “Precisamos construir resiliências”

    Com esta frase, o professor Serra nos adianta para a parte final da conversa.

    “Nós somos pobres, então precisamos utilizar o que temos. E o que temos? A paisagem, o ambiente. Isso significa que devemos trabalhar mais no restauro dessa natureza, pois ela será nossa principal aliada e o nosso baluarte natural defensivo”

    Ele defende que fortificar os assentamentos com soluções baseadas na natureza pode ser mais eficaz do que grandes obras de engenharia, citando o exemplo de países asiáticos que utilizam o bambu com esse fim. Outro ponto de atenção deveria ser a relação com os rios. Ao longo dos anos, o Limpopo, um dos principais do país, perdeu cerca de 95% da sua vegetação original. “Os rios estão desprotegidos, e isso não é tratado como prioridade”, adverte.

    Por fim, recorda que há experiências de resiliência incríveis construídas pela própria população (o que é especialmente relevante para esta pesquisa, vocês sabem). Desde produtores que apostam em culturas agrícolas mais resistentes aos fenômenos climáticos, como já tratamos em outros posts, até o uso de conhecimentos tradicionais e sabedorias populares.

    “Conheci uma senhora, em Sofala, que plantou bananeiras ao redor da sua casa, fez uma espécie de cinturão, e pelo som emitido através das folhas da bananeira ela conseguia medir a força dos ventos e tomar medidas de contenção e de resiliência”.

    Cita ainda a solidariedade comunitária, a exemplo da população de uma vila que juntou forças para abrir valas de drenagem com as próprias mãos, compartilhando comida e trabalho. “Estes são casos paradigmáticos, que nos dão algum tempo nessa batalha. Mas mesmo para isso há um limite”.

    Vencer esses limites deveria ser um objetivo central de governos e das diversas instituições da sociedade. E neste sentido, observa Serra, a comunicação pode desempenhar um papel central, pois a informação útil ajuda a prevenir fenômenos climáticos extremos e a construir resiliências.

    “Nós temos os dados, mas não conseguimos traduzi-los em informação útil para a população, em tempo útil. Isso é grave. Precisamos reinventar a forma de comunicar, especialmente numa época em que a desinformação se propaga mais rápido que a verdade”

    Finaliza o professor, e por aqui eu finalizo também. “A desinformação se propaga mais rápido que a verdade” me parece uma boa frase para concluir esse relato e acho que realmente não preciso acrescentar nada a isso. Está aí posto o nosso desafio, enquanto sociedade e particularmente enquanto comunicadores, neste momento crucial da nossa história.

    *Quando cito “A Nação do Mangue”, faço referência ao enredo da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio para o próximo carnaval, sobre o movimento do manguebeat e a força criadora das margens. Tenho a honra de fazer parte da equipe de criação desse enredo.

  • Está caro

    Está caro

    Tomate, alface, pimenta, maçã, abacaxi, batata, cebola, peixe, camarão, grãos. Gente por todos os lados, trouxas equilibradas na cabeça, pechincha, jogos de carta. Estou no mercado grossista do Zimpeto, zona comercial em Maputo, para onde é destinada parte dos produtos produzidos nas machambas que visitei nas últimas semanas, em Moamba Chibuto, além de outras regiões do país.

    O movimento é intenso e ali se percebe com mais nitidez os efeitos para a população em geral do que tenho relatado nos outros posts – a seca, as enchentes, o clima impactando a produção de alimentos no país. É outra perspectiva agora, não mais das famílias camponesas que veem os eventos extremos atravessarem seu dia a dia, mas daqueles que vivem na cidade e percebem esses eventos no preço.

    “Está caro”, me diz a senhora vendedora de legumes. Ela está sentada em uma das extremidades do mercado desde as primeiras horas do dia, com sua banca de couves e alfaces, e àquela altura, por volta do horário do almoço, praticamente não tinha vendido uma folha. O alface, em especial, tem saído muito pouco nas últimas semanas, pois necessita de água em seu cultivo e estamos vivendo período de seca nas plantações.

    Ela me conta tudo isso numa mistura do português com a changana. Queria ter um pouco mais de tempo para compreender essa língua local, tão falada e tão profundamente moçambicana. Quem me ajuda na “tradução” é o fotógrafo e artista Alex Nhare, mais um amigo desses tempos em Maputo. Alex trabalhou por muitos anos como vendedor no mercado e me ajuda a percorrer as ruas, becos e todos os cantos do local. Conta-me histórias, reencontra pessoas, me auxilia em algumas abordagens.

    Gravei uma bela entrevista com a senhora vendedora de legumes, e depois descobri, já em casa, que o microfone havia falhado e não captou uma palavra. Coisas da tecnologia, da comunicação, da vida de um pesquisador. Com os fragmentos do que me lembrava e a boa memória do Alex, reconstituímos parte da história que ela nos contou.

    Mulher vende hortaliças
    Foto de Alex Nhare

    Conversei também, formal e informalmente, com outras pessoas no mercado e nos arredores. A percepção do alto custo dos alimentos é bastante presente. As vendedoras também tinham uma reclamação constante sobre a escassez de clientes e a baixa nas vendas. “Obrigado por me garantirem algo pra hoje”, disse a jovem vendedora de bananas, com quem compramos um cacho.

    Todo mundo com quem conversei disse que “está difícil”.

    Uma trabalhadora em especial, importadora de maçã, me explicou que o tempo frio atrapalha sobremaneira as vendas – não só pela parte da produção, mas especialmente porque as pessoas dispõem de menos recursos. Aquelas que trabalham informalmente, por exemplo, ficam menos tempo na rua e a renda cai. “No tempo de calor as pessoas têm dinheiro, eles conseguem vender desde a manhã até 23h, ficam até tarde na rua, a circular, a vender. Nesse tempo de frio, às 18h as pessoas já não estão na rua”, me explica.

    E como fazer? Minha pergunta de sempre. A questão que gira, gira e ajuda a justificar essa pesquisa: o que fazer para vencer essas situações muito adversas e seguir vivendo?

    “É um sacrifício que fazemos. Nesse tempo de frio não há dinheiro; mas, pronto, fazer o que? Tem que sacrificar. Para pagar as contas de casa, manter a venda, conseguir um futuro”

    As maçãs vêm da África do Sul, país vizinho, em outro estágio de desenvolvimento econômico, que fornece uma grande parte de insumos a Moçambique, em diversas áreas, da agricultura aos produtos industrializados, como máquinas, eletrodomésticos, veículos etc. É uma relação bastante assimétrica, com grande superávit comercial do país sulafricano, ocasionando uma forte dependência econômica.

    Os comentários sobre essa dependência são recorrentes, especialmente nas conversas com os motoristas de Yango (o aplicativo de transporte individual, à semelhança do Uber). A gasolina é importada em grande volume, sem produção suficiente para abastecimento interno, então o preço é elevado. Isso impacta o custo de vida e torna Moçambique um país caro para os moçambicanos.

    Vários tipos de feijão vendidos em uma feira

    Curiosamente, nos dados oficiais, a inflação em junho sofreu um leve recuo, de 0,07%, queda influenciada pelo preço das… hortaliças. No acumulado de um ano, no entanto, os preços subiram 4,15%. O maior aumento foi justamente na área de alimentos e bebidas – quase 10% em doze meses.

    A vida está cara sim. Como estrangeiro, percebo menos, embora minha percepção pessoal também seja de um país mais “caro” do que há sete anos, quando vim pela primeira vez. Mas claro que faz uma grande diferença estar como turista, como em 2018, num ritmo veloz para conhecer tudo quanto possível em menor espaço de tempo – e um pouco mais de disposição para gastanças; e agora, que tenho vivido a rotina e mergulhado mais profundamente na vida da cidade.

    Hoje, o preço do mercado me impacta mais. Descobri no Zimpeto uma boa alternativa aos mercadinhos que tenho na minha esquina. Vou voltar – da próxima vez, com um microfone que funcione.

  • Rito ra Chibuto*

    Rito ra Chibuto*

    Em Gaza, fala-se changana.
    O português é a língua oficial em todo o vasto território moçambicano, com sua dezena de províncias e mais de 160 distritos, que ocupam uma área de quase 800 mil km² (mais que a soma do território de França, Inglaterra e Portugal, para citar apenas três significativos exemplos). Contudo, em que pese a oficialidade do português, outras 40 línguas são faladas no país, originárias da colcha de diversas etnias que formam essa nação.

    A changana é a mais popular dessas línguas. É difícil encontrar um moçambicano que não a fale, e à medida que avançamos para o interior e nos distanciamos da agitada Maputo, mais e mais essa língua se torna a principal na comunicação entre os moradores.

    Comunicação, essa é a palavra-chave do texto de hoje.

    Fachada de edifício com a escrita na parede "Radio comunitária"

    Como adiantei na última semana, partimos para um novo destino, na província de Gaza: a cidade de Chibuto, distante cerca de quatro horas de Maputo. Quando escrevo no plural, significa que partimos eu e Edgar Barroso, pesquisador moçambicano que faz seu doutorado em Goiás e também integra este projeto. Um amigo que encontrei nessa estrada.

    Em Chibuto, fomos acolhidos pela diretora da rádio comunitária local, a querida Tuária. Conhecemos o estúdio e ela fez a ponte com todas as pessoas com quem conversamos, acompanhando sempre que possível e nos indicando os caminhos para obtermos êxito em nossa investigação no distrito.

    A forma gentil e dedicada com que nos apoiou e sua relação próxima com diferentes atores locais nos deu a dimensão do papel e da importância da rádio para a sociedade de Chibuto. O veículo é o único radiofônico do distrito e o principal meio de comunicação para a população.

    “Muitas pessoas não possuem televisão, então é aqui que elas esperam ouvir notícias, informações e entretenimento. Se a rádio para por um segundo, já começo a receber ligações”, comenta Tuária.

    Mulher de pele morena, cabelo longo e trançado com um belo sorriso, sentada em uma cadeira e vestindo uma blusa de manga cumprida roxa e colete da radio.
    Tuária, nossa anfitriã em Chibuto.

    Nas ondas do rádio, em português e em changana, são transmitidos programas diversos sobre cultura, economia, gênero, saúde, mas também informações a respeito de meteorologia e dos efeitos do clima.

    Recentemente, Chibuto sofreu com fortes chuvas que levaram à inundação de áreas agrárias e zonas residenciais. As águas do Rio Limpopo deixaram mais de 20 mil famílias sitiadas e ao menos cinco mil produtores severamente afetados. O impacto em áreas sensíveis como a insegurança alimentar foi relevante.

    Situações como essa fazem do clima uma pauta constante na programação da rádio. O tema é abordado seja por meio da leitura de boletins emitidos pelo Instituto Nacional de Meteorologia, seja por programas mais instrutivos, com dicas sobre formas mais seguras de construção das moradias, por exemplo. Além disso, em caso de avisos urgentes, um veículo da rádio percorre as diferentes comunidades da região.

    “As mudanças climáticas são a situação mais influente dos últimos tempos, com muitos eventos extremos e alguns repentinos. Buscamos disseminar informações de modo que as pessoas saiam de suas zonas e se transfiram para lugares mais seguros, ou que colham os produtos que já puderem ser colhidos, uma vez que o temporal está se aproximando”, exemplifica.

    Chibuto sofre com a dualidade climática que marca o país. Ciclones e chuvas fortes de um lado, período prolongado de seca na maior parte do ano. Um pequeno produtor de abacaxis nos contou que as famílias do campo hoje enfrentam novos desafios por conta do aprofundamento das questões climáticas. A comunicação, por meio da rádio ou das redes sociais, é considerada fundamental para a prevenção dos desastres.

    As rádios comunitárias, em Moçambique, possuem um caráter público, pois estão oficialmente ligadas ao Instituto de Comunicação Social, órgão governamental. São mais de 80 estações em todo o país, inclusive naqueles distritos mais distantes. Mesmo sendo braço governamental, realizam um esforço de ouvir e trazer a voz da sociedade na programação. Para isso, as equipes costumam se deslocar, mesmo com dificuldades, buscando retratar o cotidiano de camponeses e da população em geral.

    Os produtores atingidos pelas enchentes do início do ano, parte relevante da audiência da rádio, estão neste momento refazendo seus campos, buscando alternativas e investindo em outras culturas agrícolas, mais resistentes às mudanças do clima. Quando pergunto sobre as formas de sobrevivência às adversidades que por vezes parecem intransponíveis, Tuária dá uma explicação que me remete a uma velha expressão popular brasileira, imortalizada na canção de Adoniran: aquela máxima de que “Deus dá o frio conforme o cobertor”.

    O moçambicano, de forma geral, é um povo crente (de grande diversidade religiosa). E, ao lado de outros instrumentos, também conta com sua fé para atravessar esses momentos.

    “Deus nunca pode destruir algo e não deixar alguma coisa que possa ajudar as pessoas. Então, a destruição atinge mais as zonas baixas, mas existem as zonas altas. As pessoas ficam sem seus produtos, mas recorrem a outros produtores que não foram afetados ou ao mercado. Contam com o apoio do governo, investem em outros produtos mais resistentes, encontram soluções”, afirma Tuária, que finaliza recordando uma plantação com dezenas de trabalhadoras que avistamos mais cedo, atingida pelas cheias de meses atrás:

    “Agora eles estão recomeçando a lançar as sementes. Sempre há uma saída”.

    Campo após enchente
    Trabalhadoras no campo atingido pelas enchentes: hora do replantio

    *A voz de Chibuto, em changana

  • Ventos de Moamba

    Ventos de Moamba

    Associativismo, experiência histórica e… redes sociais. Três das chaves para sobrevivência em tempos de extremos climáticos. Vou contar um pouco do que ouvi nesta última semana em uma pequena viagem muito especial.

    Estamos em Moamba para a continuidade das escutas da pesquisa que me trouxe até Moçambique. Nesta pequena vila localizada a cerca de duas horas de Maputo venta forte. Uma liderança local, que nos recebe com um café e muitas boas histórias à sombra de uma árvore no quintal de casa, explica que estes ventos são característicos em alguns meses do ano, especialmente no período de seca, mas que dessa vez haviam chegado mais cedo.

    É ele quem nos diz algo forte assim que nos sentamos:

    “Eu desisti da agricultura, por conta das mudanças climáticas”.

    O “ex-agricultor” mostra os equipamentos que havia comprado, estocados num pequeno cômodo no quintal, e disserta sobre as alterações na paisagem nos últimos anos e a falta de uma política governamental que dê suporte a quem deseja produzir. Não descarta voltar à atividade agrária. Eu apostaria que sim.

    O dirigente de uma associação de camponeses da região também nos informa da falta de apoio e, especialmente, da dificuldade de financiamento para modernização dos campos de trabalho. Mas não vê espaço para mais desistências:

    “Está difícil, mas sempre permanecemos. Se saio daqui, vou para onde?”

    O associativismo é uma saída prática para dividir os custos de energia e para compartilhar as soluções. São 130 membros ativos, que produzem em uma área de aproximadamente 230 hectares. Juntos, sabem que será mais fácil ser resilientes frente às intempéries climáticas e também às barreiras políticas. Numa região marcada pelo calor intenso, a modernização dos sistemas de irrigação é uma pauta crucial deste momento, capitaneada pela organização. Segundo nos conta essa liderança, no passado o governo brasileiro já se dispôs a apoiar os agricultores moçambicanos, mas a iniciativa não progrediu.

    Árvore antiga

    Moamba historicamente sofre com fortes chuvas, mas principalmente com períodos prolongados de seca. Este ano, a última gota d’água caiu em março, há três meses. A expectativa é que assim permaneça até dezembro, quando deve iniciar o breve período chuvoso.

    O homem de sorriso largo que desistiu do campo nos explica que a região da Moamba sempre conviveu com este cenário das secas, algumas bastante severas nos últimos cinquenta anos, mas houve um agravamento da situação: enquanto na década de 70, havia um acumulado de cerca de 200 mm de água durante o período chuvoso, hoje os índices não passam de 50 mm ao longo de todo o ano.

    E como lidar com isso? No caminho entre as diferentes áreas que visitamos, entre grandes plantações de repolhos, alfaces, pimentões e tomates, os dois rapazes responsáveis por nos guiar em suas motos nos contaram que suas famílias sempre trabalharam no campo, como a maior parte da população local. E que aprende-se a lidar com as situações adversas no próprio cotidiano. O conhecimento adquirido pela convivência com os extremos ao longo da história é uma chave que possibilita a resiliência em tempos duros.

    Nas machambas (plantações), conversamos com alguns trabalhadores que também reforçaram esse entendimento: a experiência e sabedorias adquiridas com o tempo, de geração em geração, são a base para todo o trabalho, acima de quaisquer outras técnicas. Seja para escolher os produtos que serão plantados em cada época, de acordo com a expectativa climática; para encontrar as melhores áreas, de preferência próximas ao Incomati, o grande rio que cruza toda a zona; ou mesmo para buscar soluções de combate a problemas inesperados.

    Aos pés do que me pareceu uma figueira (embora eles mesmos não soubessem definir muito bem), um dos trabalhadores falou de outra chave para lidar com os efeitos cada vez mais intensos do clima, que confesso ter ficado um pouco surpreso, embora faça todo o sentido: a comunicação e aprendizagem via redes sociais. É o terceiro ponto do tripé que abriu o texto.

    Não fiquei surpreso com o uso das redes sociais, pois isso já havia apreendido desde o primeiro instante e especialmente na conversa com a Telma, que relatei na última semana. A comunicação sempre foi crucial nos alertas sobre eventos extremos, desde as rádios comunitárias até as tecnologias mais contemporâneas de informação, como o próprio whatsapp. As pessoas se falam, se comunicam, trocam informações, assim o é “desde que o mundo é mundo”.

    O que achei mais interessante foi outra finalidade de uso das redes, que este mesmo trabalhador me explicou: a busca por soluções desenvolvidas por outras comunidades, às vezes em contextos muito distantes, para lidar com problemas parecidos aos que eles enfrentam.

    “Vemos em outros países como eles fazem e melhoramos aqui também. Aprendemos com a experiência de outros lugares”.

    Na sua avaliação, por conta dessa interação, hoje ele tem muito mais ferramentas para lidar com as situações do que há seis anos, quando começou a trabalhar no campo.

    Fiquei ainda mais interessado em compreender como as redes sociais e os meios de comunicação, de forma ampla, têm sido aliados para compartilhamento de saberes e o desenvolvimento de soluções. Isso já está no escopo da pesquisa, obviamente, mas a forma espontânea como surgiu na conversa, sem que eu tivesse feito uma pergunta explicitamente nesse sentido, me chamou a atenção e ajudou a iluminar alguns caminhos daqui pra frente.

    Qual a próxima parada? Neste momento estamos buscando viabilizar uma viagem para outra província, um pouco mais distante. Espero voltar com um texto bem interessante sobre isso na próxima semana. Mas ainda não consigo cravar. Entre risos, lágrimas, conversas muito sérias e orientações dispersas, Moçambique tem me ensinado que, ainda que seja necessário planejamento, há sempre um grau de incerteza no amanhã. Vou deixar o vento dos encontros me conduzir – eles têm sido bons companheiros.

  • Atentas aos sinais

    Atentas aos sinais

    “Moçambique é responsável por menos de 0,2% das emissões globais de gases de efeito estufa, mas é aqui que a conta das mudanças climáticas chega mais cara”

    Eu ia começar de outra forma esse post, relatando um pouco desta terceira semana em Maputo, rica em arte e contatos humanos. Pensei em abrir de uma forma leve, como têm sido os meus dias. Mas, minutos antes de sentar à mesa para iniciar o texto, essa frase pronunciada em um programa da STV, um dos principais canais de televisão moçambicanos, me pegou desprevenido e alterou por completo minha rota de pensamento.

    A crise climática é, sobretudo, uma continuidade perversa do “velho tema” das desigualdades, todos sabemos. Não é uma crise “natural”, que atinge de forma igual diferentes povos e regiões. Claro que não. Afeta desigualmente, especialmente aqueles que historicamente têm custeado o “desenvolvimento” alheio. Eu sei que, a essa altura, isso é o óbvio ululante. Mas o dado em si é forte: Moçambique produz uma fração de apenas 0,2% dos gases de efeito estufa globais e, ao mesmo tempo, é um dos dez países mais atingidos pelas mudanças climáticas. Em 2019, conforme me conta a especialista Telma Manjate, o país figurou no topo dessa lista.

    Grupo de mulheres lavam roupa na beira de um rio
    Foto de Yassmin Forte*

    Telma me recebeu em sua sala, no Ministério da Agricultura e Ambiente, na região central de Maputo, na última semana. Tivemos uma longa e agradável conversa, em que ela me apresentou um panorama sobre a situação ambiental no país. Gostaria de dedicar o post de hoje para trazer alguns recortes dessa entrevista.

    Com a autoridade de quase três décadas de experiência em pesquisas e atuação técnica no tema, seja no ministério, seja em organismos como as Nações Unidas, Telma atualmente se dedica a uma missão especial: a inserção das mulheres e das questões de gênero nos debates sobre o clima em Moçambique.

    “A mulher rural é quem busca água, lenha, quem garante a segurança alimentar e, portanto, é mais fortemente impactada pela escassez de recursos. Mas seus desafios específicos são invisibilizados. Apesar de central nas dinâmicas familiares, ela não é ouvida”, observa.

    Ela mesma admite que não considerava esse um tema prioritário até recentemente, quando foi convidada a compor uma equipe para atualizar a Lei do Ambiente, integrando a dimensão do gênero. Ali, compreendeu que esta é uma questão primordial e deve ser considerada na formulação de políticas, estratégias e programas. E tem ajudado essa compreensão a avançar no país, dentro do próprio ministério.

    Atualmente, este é o tema de seu doutorado, que desenvolve na Universidade de Brasília (UnB), num caminho muito comum de intercâmbio entre pesquisadores moçambicanos e instituições acadêmicas brasileiras – caminho que agora me orgulho também de fazer parte, na via inversa.

    Mulher morena de óculos e cabelo curto vestindo terno e sentada em uma cadeira dentro de um escritório
    Telma Manjate

    Há razões de natureza geográfica que explicam a exposição de Moçambique aos eventos extremos: o país está localizado à beira do oceano Índico, mais propenso a ciclones, e possui zonas sujeitas a secas prolongadas. Mas Telma acredita que estes não são os fatores preponderantes para a crise.

    “O que agrava essa exposição são fatores não climáticos: pobreza, desigualdade de gênero, analfabetismo, fraca articulação institucional, e uma desconexão entre a academia e o setor público”, enumera.

    Esta situação agrava um cenário social complexo, com elevado nível de insegurança alimentar – a fome, esta palavra dura, que é a última expressão que eu gostaria de utilizar em um texto sobre Moçambique, dado todos os estigmas, estereótipos e “histórias únicas” reinantes no imaginário sobre o continente; mas que também é uma realidade inescapável. Há fome.

    Na última semana, o governo local lançou uma nova Política e Estratégia de Segurança Alimentar e Nutricional. O objetivo é reduzir, até 2030, o altíssimo índice de 37% das crianças menores de cinco anos com desnutrição crônica (eram 43% há dez anos). Atualmente, estima-se que cerca de um milhão e meio de moçambicanos vivam em situação de insegurança alimentar. O investimento previsto pelo programa é de algo equivalente a R$ 40 bilhões de reais. Chequei a conversão algumas vezes antes de prosseguir.

    As situações mais críticas se encontram nas regiões do centro e norte do país – eu estou no sul. Mas também aqui existem zonas em que se pode ver e ouvir o impacto desta crise nas comunidades locais, especialmente aquelas dedicadas à agricultura de subsistência. A partir dessa semana, devo começar a percorrer regiões como Boane, Manhiça, Gaza, Chibuto e outras mais onde meus pés alcançarem, guiados por verdadeiros amigos e irmãos que tenho encontrado aqui.

    Gente tão parecida comigo, tão familiar em suas alegrias, dores e esperanças. Gente que ri muito, que abraça com sinceridade, que dança. Nas barracas (bares) das periferias da cidade, tomando uma 2M (a melhor cerveja do mundo, eles dizem e eu confirmo), ouvindo rap, marrabenta, músicas sulafricanas e um punhado de inesperadas canções brasileiras. Estou em casa.

    Cerveja sobre mesa de bar

    Por isso (finalizando esse post já enorme de hoje) faço questão de falar com muito carinho, respeito e aprendizado desta casa. Essa pesquisa, como eu já disse no primeiro post, se dedica a olhar para um cotidiano duro, mas para buscar especialmente as soluções e tecnologias sociais que estas comunidades têm construído para lidar com essa realidade. As saídas para a crise serão construídas por essas mãos.

    A comunicação tem ocupado um espaço central nas dinâmicas de prevenção, por meios dos avisos meteorológicos e troca de informações entre a própria população. Também técnicas como o uso de sementes de ciclo curto ou a adoção de blocos queimados para a construção das casas, tornando-as mais resistentes aos ciclones.

    Órgãos governamentais, internacionais e mesmo a academia têm auxiliado nestas medidas. Contudo, o conhecimento local, histórico, ancestral ainda é a chave-mestra para a resiliência, como explica Telma, a quem sou imensamente grato por todo conhecimento compartilhado:

    “As comunidades têm seus próprios sinais, observam a natureza: a quantidade de papaia, o vento, os elefantes – estes já quando a situação é extremamente crítica. A academia e o governo deveriam compreender melhor esses saberes locais”.

    Eu sigo aqui, atento aos sinais, buscando compreender tudo o que este país tem a me dizer.

    *A foto que abre esse post é da fotógrafa e ativista social moçambicana Yassmin Forte. A imagem foi registrada na exposição Inter-diáspora, com artistas de Moçambique e do Brasil, no Instituto Guimarães Rosa, em Maputo.

  • Que estação é essa?

    Que estação é essa?

    Estamos no Outono, tempo de dias quentes e noites frias – não as geladas como ouço dizer que está no Rio, agora distante cerca de 7,5 mil quilômetros.

    Estamos também na estação seca, neste pêndulo que governa Moçambique, do ponto de vista climático: os meses chuvosos e aqueles em que raras são as lágrimas de Ombela caindo do céu. Assim deve permanecer até outubro.

    Estamos em Maputo. Estação Maputo!

    Aos que me perguntam como é, costumo responder: familiar. E quente! Mas não apenas pelo que se verifica nos termômetros da cidade ou pelo enorme sol que nos fornece um espetacular entardecer ao fim de cada dia. O calor aqui se mede especialmente no pulsar da vida na capital: agitada, complexa, caótica, energética, suada. Me sinto em casa.

    Céu de cor laranja no entardecer de Maputo

    Estou aqui para uma pesquisa desenvolvida em parceria pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e a Escola Superior de Jornalismo de Maputo – e também com outras universidades em diferentes regiões do continente africano. Ela é coordenada pela grande professora e pesquisadora Marialva Barbosa, e eu estou realmente muito honrado e grato por estar aqui, de volta à Moçambique sete anos depois, quando visitei pela primeira vez para curtir umas férias. Dessa vez, há trabalho e novas questões a descobrir.

    No centro das nossas atenções está a crise climática e seus desdobramentos sociais, especialmente no que diz respeito à insegurança alimentar. Compreender de que forma comunidades locais são afetadas pelos efeitos mais cruéis das mudanças climáticas e especialmente as tecnologias sociais desenvolvidas por essas comunidades para lidar com as adversidades e construir suas vidas.

    Moçambique é uma das dez nações mais vulneráveis do mundo aos eventos climáticos. Historicamente, o país tem sido o mais afetado por desastres naturais de toda a África Austral (a região mais ao sul do continente africano). Em 45 anos, foram registrados 53 desastres, que exigiram o deslocamento físico de cerca de 500 mil pessoas. Apenas nas últimas duas décadas, mais de 8 milhões de moçambicanos foram afetados de alguma forma por esses desastres. Os dados estão presentes no estudo Climate Change Adaptation in Mozambique, assinado por um conjunto de pesquisadores moçambicanos.

    Nos últimos meses, o fenômeno do El Niño tem provocado ainda menos chuvas, com grave impacto para a produção agrícola, provocando efeitos devastadores: apenas como um exemplo, a província de Sofala, no centro de Moçambique, vive uma grave crise alimentar, que os jornais destacam como “sem precedentes”, com 600 mil pessoas atingidas pela escassez dos alimentos. Em outra ponta, a mineração tem elevado a poluição nos rios, obrigando também o abandono de pequenos agricultores das regiões antes férteis.

    Em todo o mundo, o homem avança sobre a natureza e produz as causas da própria destruição. É esta a nossa era, dizem os cientistas, o Antropoceno.

    Aqui, contudo, florescem também histórias de resiliência e de arranjos sofisticados para se lidar com a crise e tornar a vida possível mesmo em espaços em que ela se encontra sufocada. Em Manica, Boane, Chibuto, Gaza, Manhiça e nas esquinas, barracas e paragens de Maputo. Onde a vida pulsa, se refaz, transforma, ferve, queima.

    São essas histórias que queremos contar. Relatos, personagens, comunidades que este blog pretende registrar nas próximas semanas. Sintam-se todos convidados a chegar e a permanecer nesta nossa viagem.

    Partimos de Maputo, qual será a próxima estação?

    Também estou produzindo relatos mais pessoais do cotidiano em Maputo, em especial na minha página no instagram (@jadermoraesrj). Se quiser saber um pouco mais desse dia a dia, chega lá!