Lá se vão 49 dias. E desde que cheguei a Maputo, ao dividir com as pessoas o tema desta pesquisa, colho uma recomendação unânime: “você precisa ouvir o professor Carlos Serra”. Recebi essa instrução já nos primeiros dias, com os professores da Escola Superior de Jornalismo, e em outras entrevistas e conversas informais sobre o projeto.
Depois de alguns desencontros, devido especialmente à sua agenda muito disputada, consegui enfim cumprir a recomendação de todos os meus interlocutores: ouvi o professor Carlos Serra na última quarta-feira. E descobri o porquê da reiterada recomendação logo na primeira questão da entrevista, sobre os principais desafios, em termos climáticos, que o país enfrenta nesse momento.
“O maior desafio é assumirmos que isso das mudanças climáticas é sério. E assumir passa por uma forte consciência do problema, bem como das soluções que Moçambique pode adotar”
O professor Serra é moçambicano, nascido na Beira, segunda maior cidade do país, na região central de Moçambique. Ele me recebeu em sua sala, na Faculdade Nacional de Direito, onde atualmente é diretor-adjunto de Pesquisa e Extensão. Na universidade, leciona disciplinas relacionadas ao direito do ambiente, do urbanismo, do ordenamento do território, do clima e do patrimônio cultural. “São as áreas que me apaixonam”, explica.
Nas próximas linhas (mais longas do que as demais postagens, espero que me compreendam e consigam chegar ao fim), apresento algumas das principais questões que tratamos na entrevista.

Conversar com o professor foi importante, entre outras razões, porque ele me apresentou com mais profundidade algo que tinha aparecido apenas timidamente nas conversas até aqui – os efeitos dos ciclones que castigam grandes áreas do país. A sua cidade-natal, Beira, enfrentou um evento de extrema gravidade há seis anos, o Ciclone Idai, que atingiu mais de 2,5 milhões de pessoas, provocou devastação e deixou cerca de seiscentos mortos apenas em Moçambique – o fenômeno também foi sentido em outros países do continente.
Grande parte do país está na rota destes ciclones, com desastres que se repetem ao longo dos anos. Contudo, assom como a professora Telma Manjate, que ouvi no início da minha jornada aqui, ele enfatiza que os fatores preponderantes para a crise não são aqueles “naturais”, mas sim escolhas políticas equivocadas e pouco comprometidas com o futuro do país.
“A história das nossas cidades não é determinada por razões ambientais ou paisagísticas, mas sim por razões econômicas. A cidade da Beira foi construída em um território ecologicamente sensível e está literalmente afundando. Ainda assim, continua a receber muita população. É um paradoxo: devíamos estar preocupados em criar um plano de mitigação, de deslocamento das populações, mas o que temos visto é uma quantidade enorme de pessoas que chegam e começam a ocupar as áreas que eram arrozais, pântanos etc. Mais gente, mais ocupação desordenada”
A preocupação com o crescimento populacional desordenado, que pontua diversas falas do professor, não é isolada. Um estudo recente da Universidade Eduardo Mondlane projetou a duplicação da população de Moçambique nos próximos trinta anos. Achei os dados bastante impressionantes: em três décadas, o país deve passar dos atuais 30 milhões para 60 milhões de habitantes. “Esse crescimento populacional em um território tão vulnerável é preocupante”, reforça.
Para Serra, o enfrentamento dos problemas decorrentes desse quadro envolvem decisões políticas difíceis, que ele não acredita que sejam tomadas neste momento. Ações como o reordenamento do território, com deslocamento da população para áreas mais seguras e mesmo a transferência da capital política de algumas províncias.
Para explicar um dos grandes problemas da ocupação costeira no país, o professor dá um exemplo que hoje me é muito familiar (minha cabeça vai ao Brasil, a Recife, à Grande Rio, à Nação do Mangue que estamos a construir*). Serra fala da natureza dos manguezais, que suportam os ventos mais intensos, e das árvores mais baixas, com raízes profundas que se interligam, ambos presentes de forma natural em toda a costa. “É como se uma família toda estivesse agarrada uns aos outros para nenhum dos membros se soltar”, ilustra.
Com a substituição dessas árvores por outras espécies, como algumas frutíferas vindas da Índia e do Brasil a partir da colonização portuguesa, com características mais verticalizadas e não preparadas para resistir a fortes ventos, cria-se um risco para as pessoas e as residências. Ele recorda de um ciclone que recentemente afetou a cidade de Quelimane e tombou imensos coqueiros. “O coqueiro não é dali, mas foi trazido de uma região onde esse tipo de fenômeno é muito menos frequente, e pessoas acabaram perdendo a vida em função disso”.

O exemplo foi impactante e me ocupou por um tempo, tomando boa parte dos rumos da conversa. Fiquei pensando em situações muito semelhantes também no Brasil, de modificação de paisagens naturais, que agravam desastres e ceifam vidas. O homem é o lobo do homem mesmo…
“Precisamos construir resiliências”
Com esta frase, o professor Serra nos adianta para a parte final da conversa.
“Nós somos pobres, então precisamos utilizar o que temos. E o que temos? A paisagem, o ambiente. Isso significa que devemos trabalhar mais no restauro dessa natureza, pois ela será nossa principal aliada e o nosso baluarte natural defensivo”
Ele defende que fortificar os assentamentos com soluções baseadas na natureza pode ser mais eficaz do que grandes obras de engenharia, citando o exemplo de países asiáticos que utilizam o bambu com esse fim. Outro ponto de atenção deveria ser a relação com os rios. Ao longo dos anos, o Limpopo, um dos principais do país, perdeu cerca de 95% da sua vegetação original. “Os rios estão desprotegidos, e isso não é tratado como prioridade”, adverte.
Por fim, recorda que há experiências de resiliência incríveis construídas pela própria população (o que é especialmente relevante para esta pesquisa, vocês sabem). Desde produtores que apostam em culturas agrícolas mais resistentes aos fenômenos climáticos, como já tratamos em outros posts, até o uso de conhecimentos tradicionais e sabedorias populares.
“Conheci uma senhora, em Sofala, que plantou bananeiras ao redor da sua casa, fez uma espécie de cinturão, e pelo som emitido através das folhas da bananeira ela conseguia medir a força dos ventos e tomar medidas de contenção e de resiliência”.
Cita ainda a solidariedade comunitária, a exemplo da população de uma vila que juntou forças para abrir valas de drenagem com as próprias mãos, compartilhando comida e trabalho. “Estes são casos paradigmáticos, que nos dão algum tempo nessa batalha. Mas mesmo para isso há um limite”.
Vencer esses limites deveria ser um objetivo central de governos e das diversas instituições da sociedade. E neste sentido, observa Serra, a comunicação pode desempenhar um papel central, pois a informação útil ajuda a prevenir fenômenos climáticos extremos e a construir resiliências.
“Nós temos os dados, mas não conseguimos traduzi-los em informação útil para a população, em tempo útil. Isso é grave. Precisamos reinventar a forma de comunicar, especialmente numa época em que a desinformação se propaga mais rápido que a verdade”
Finaliza o professor, e por aqui eu finalizo também. “A desinformação se propaga mais rápido que a verdade” me parece uma boa frase para concluir esse relato e acho que realmente não preciso acrescentar nada a isso. Está aí posto o nosso desafio, enquanto sociedade e particularmente enquanto comunicadores, neste momento crucial da nossa história.
*Quando cito “A Nação do Mangue”, faço referência ao enredo da escola de samba Acadêmicos do Grande Rio para o próximo carnaval, sobre o movimento do manguebeat e a força criadora das margens. Tenho a honra de fazer parte da equipe de criação desse enredo.
