Última parada: Manhiça. Faltando já bem pouco para meu retorno ao Brasil, me desloquei na última semana para esse pequeno distrito localizado a apenas 90 km de Maputo. Na Vila da Manhiça, mais uma vez com o apoio do Alex, conheci pessoas, famílias e um pouco do cotidiano local – as barracas, as igrejas, o grande rio com suas histórias, lendas e personagens temidos.

O temor maior é quando ele sobe. Não é história de assombração, é vida real: no ano passado, mais de 200 hectares com diversas culturas agrícolas foram inundados com as cheias do rio Incomáti, impactando centenas de famílias que necessitam dos alimentos produzidos em suas pequenas machambas para sobreviver. A agricultura familiar é a base econômica e social do distrito.
Encontrei a senhora Paineta, 56 anos, trabalhando em uma das machambas ao redor do rio, ao lado de outras mulheres, que também são maioria aqui, como em quase todas as regiões que visitei. São machambeiras. Elas carregam esse país nos braços, nas costas, nas mãos inchadas e firmes, nos pés fincados no barro criador.
Paineta trabalha no campo desde 1983, quando ainda era adolescente (“no tempo da guerra”, ela pontua). Em changana, me diz que sabe que em breve virá uma grande chuva, que deve destruir tudo o que estão plantando. Levanta todos os dias e vem ao trabalho não pela certeza de que irá produzir os alimentos que necessita, mas porque não quer ficar sozinha em casa; na terra encontra as amigas e o tempo passa mais depressa.
Eu fico muito impressionado com a força, os gestos, a ênfase de sua fala, como é possível visualizar no vídeo. É algo muito poderoso. “Mama”, pergunta o Alex, chamando-a pela forma de tratamento que os moçambicanos costumam dedicar às mulheres mais velhas, “hoje está pior do que quando começou a trabalhar?”
A mama assegura que sim, que antes eram mais previsíveis os períodos chuvosos e menos intensos os volumes de chuva. Era possível plantar, colher e ter uma vida boa através das machambas. Hoje, quando a situação está muito ruim, ela encontra uma amiga que lhe ajuda com algum dinheiro para capinar um terreno, em quantia suficiente para comprar alimento básico.
Paineta, assim como a maior parte das suas companheiras de jornada, chega na machamba bem cedo, antes do sol torrar a cabeça, e retorna à casa no início da tarde, atravessando o rio que separa as plantações e a vila de Manhiça. Ela sonha um futuro em que a terra volte a ficar boa, com chuvas mais regulares e menos intensas, em que seus filhos tenham grandes plantações.
“E que não seja mais eu a fazer esse trabalho”
Ela sonha descansar.
Quem também sonha dias tranquilos é Júlio Gonçales, senhor octagenário que, após uma vida de mais de cinquenta anos dedicado ao trabalho no campo, hoje vive em repouso numa casa simples construída em um terreno que divide com a família. Embaixo de uma árvore no quintal, me conta sobre seus tempos de meio-campista em um time local e me pergunta sobre os jogadores brasileiros. Falamos de Pelé e Maradona. Sorri, recorda memórias. Quando inicio a gravação da entrevista, já um pouco mais sério e contrito, é direto ao dizer que as machambas já não produzem nada.
Reclama da seca prolongada e expõe o dilema da relação com a chuva nestas terras: deseja que tenha mais frequência, mas teme a intensidade das águas. “Se cai normal, apanhamos qualquer coisa. Se chover muito, a gente não ganha nada”, explica.

Diz que no seu tempo, plantava cana, milho, batata doce. Explica que hoje precisam aguardar a água baixar após as cheias, o que ocasiona períodos inteiros sem plantio e colheita. E me dá a resposta mais cortante que talvez eu tenha colhido em todo esse tempo. Simples, direto, exatamente como transcrevo abaixo.
“Enquanto a água não baixa, não tem alimento?”
“Nada”
“E aí faz como, sr. Julio?”
“Sofre”
O “sofre” veio seco e solitário, seguido de silêncio. Demorei um tempinho para absorver a palavra crua. Até então, essa pergunta era sempre respondida com uma explicação dos arranjos comunitários nos momentos difíceis. Dessa vez não.
Foi uma entrevista breve (rodeada por uma conversa longa). Um pouco antes do fim, perguntei sobre o futuro que sonha para ele, seus filhos e netos. Mais uma vez, Julio usou de poucas palavras para me deixar sem as minhas.
“Agora, são os meus netos que estão a me orientar a vida. Estou à espera deles seguirem me dando um pouco de comida, até chegar o meu dia de ser chamado”

Foi mesmo profundo o que vivi em Manhiça. Pelo fato de o Alex possuir familiares no distrito, estive mais íntimo às pessoas, mesmo que brevemente. Almocei no quintal, entre risos e histórias da vila. Caminhei longos trajetos, passando por diferentes casas e compreendendo algumas tradições locais. Terminei o dia tomando uma 2M, a melhor do mundo, em boas companhias.
Saí com desejo de voltar. E poderia dizer isso sobre Manhiça, mas também sobre todo esse país. Às vésperas do retorno, sei que devo voltar. Algumas experiências e encontros são grandes e poderosos demais para serem vividos apenas uma vez.
Prova disso: esta é minha segunda vez em Moçambique. Haverá uma terceira. E quantas mais a vida permitir – espero que muitas!
